Futebol do preconceito: a invisibilidade e desvalorização de treinadores negros
- Érica Karina
- 4 de fev. de 2024
- 5 min de leitura
Em nossos últimos encontros apresentei a Copa Africana das Nações e, mais recentemente a trajetória do jovem técnico da seleção senegalesa Aliou Cissé e como se tornou um dos nomes mais expressivos de sua geração. Hoje, mudo de assunto, porém sigo na mesma linha de abordagem, Aliou Cissé é um nome importante para o futebol, tanto quanto jogador e agora como técnico, contudo, ele recebe total reconhecimento que merece? Na minha humilde opinião, não.
Questionando a falta de reconhecimento ao trabalho do senegalês, aprofundo-me no problema: a falta de reconhecimento acontece somente para com o treinador? E a resposta é um sonoro NÃO! A falta de reconhecimento para com algumas personalidades do esporte se mostra seletiva e elitista. Essa não é uma pauta militante, mas um assunto que precisa ser exposto, discutido e gerar reflexões, pois a falta de representatividade e valorização negra no esporte afeta a todos, de onde tiro isso? Baseada em pesquisas e levantamento das fontes. Vejamos mais adiante.
Não é novidade para ninguém que o racismo é um mal que assola nossa sociedade como um todo, ultrapassa barreiras geográficas e continentais. Assim como não é novidade que é um problema estrutural que baseia a formação social. A saudosa bell hooks em “e eu não sou uma mulher?” (2019) ao discutir a posição da mulher na sociedade estadunidense após a colonização, aponta para a hierarquia imposta na formação dos papéis sociais, colocando o homem branco como o centro e todos os outros como seres dispostos a sua vontade e, ao menor sinal de tomada de poder por parte das mulheres, estes abrem mão do poder em favor do homem negro, para novamente subjugar a mulher. Entretanto, o fato de abrir mão de uma minúscula gotícula de poder, não dá igualdade entre ambos, a hierarquia se mantém.
Com tantas mudanças e adaptações socioculturais poderíamos dizer que o problema do machismo e do patriarcado em nossa sociedade fora superado, infelizmente, não podemos, o que vemos é que tais problemas apenas foram mascarados, mas continuam a existir e fomentados pelas próprias normas, regras e códigos culturais. O que também não é diferente no futebol, mesmo com tantas estrelas nacionais e internacionais, o futebol e as organizações esportivas permitem que tais atitudes se perpetuem nos gramados e também para além deles, na área técnica.
Diferentemente do que vemos nas quatro linhas, o racismo na área técnica muitas vezes é velado. Não é direcionado, porém, nega oportunidades, e não proporciona equidade no mundo do futebol. Para não sair do campo da imaginação tomemos como exemplo as estatísticas.
Durante a Copa do Mundo de 2018 na Rússia tornou-se matéria em vários veículos de comunicação o fato de Aliou Cissé ser o único técnico negro, dentre 32 seleções. Segundo o Portal R7 Esportes, quando questionado sobre ser o único treinador negro, Cissé respondeu: "Esse debate me incomoda. Futebol é um esporte universal. Estamos mostrando que somos bons no campo tático. Nós, negros, temos o direito de sermos também considerados treinadores de elite".
Ainda de acordo com o Portal R7 Esportes, em um levantamento do canal de TV holandês Zoomin, realizado em março daquele ano, o técnico mais novo da Copa de 2018 é também o dono do menor salário entre os 32: enquanto Joachim Löw recebe R$ 15,9 milhões anuais, Cissé recebe pouco mais de R$ 830 mil.

Mesmo o assunto tendo gerado muita repercussão na época, logo caiu em esquecimento e 4 anos após, na Copa do Mundo de 2022, essa realidade pouco foi alterada. Iran Giusti do Portal Terra, ao discorrer sobre a diferença em relação ao número de treinadores negros e brancos na Copa de 2022, enfatiza que nós, brasileiros, somos acostumados a ver craques negros, porém, treinadores não. O autor endossa seu argumento apontado para o fato que o Brasil tendo participado de todas as Copas do Mundo desde 1930, tendo 15 técnicos, nunca teve sequer um treinador negro a frente da Seleção em uma Copa. E, analisando a Copa do Catar, vemos também essa discrepância, sendo que das 32 seleções, apenas três estão sob o comando de técnicos negros: Camarões com Rigobert Song, Senegal com Aliou Cissé e Gana com alemão-ganês Otto Addo.
Giusti traz ainda um levantamento publicado pelo jornal espanhol "Sport", no qual aponta que os técnicos estão entre os seis salários mais baixos da competição. Segundo o levantamento: “Anualmente, Otto recebe 400 mil euros (R$ 2,2 milhões), sendo assim o 6º salário mais baixo, já Rigobert recebe 340 mil euros (R$ 1,8 milhão), o 3° salário mais baixo e Aliou o segundo, com uma remuneração de 310 mil euros (1,7 milhão). Os três maiores salários são dos técnicos europeus brancos Hansi-Flick, da Alemanha (6,5 milhões de euros - R$ 36,3 milhões), Gareth Southgate, da Inglaterra (5,8 milhões de euros - R$ 32,3 milhões) e Didier Deschamps, da França (3,8 milhões de euros - R$ 21,2 milhões)”.
Talvez ao pensarmos, ah, mas isso acontece somente com as seleções, nos clubes existe pluralismo, diversidade. Será mesmo? Em um levantamento a Agencia CEUB, constatou que na reta final da Série A do Campeonato Brasileiro não havia nenhum negro empregado entre os treinadores dos 20 clubes. E no ano anterior (2022) entre os 20 clubes da Série A, apenas o Goiás estava sob o comando de um técnico negro, Jair Ventura. Nomes como Andrade, campeão brasileiro com o Flamengo em 2009, Cristóvão Borges e Roger Machado não são lembrados ou sequer mencionados nas mídias esportivas. Ainda de acordo com a CEUB, alguns técnicos caíram no esquecimento devido ao seu envolvimento em pautas raciais, citando como exemplo o nome de Roger Machado. Crença essa partilhada por muitos no mundo do futebol, como apresentada na fala de Hemerson Maria, treinador que em 2023 comandou a Aparecidense-GO na Série C “Um exemplo de um profissional que ainda não trabalhou esse ano [...] treinador excepcional e muito competente, que tem formação superior e foi um grande jogador vitorioso, mas hoje simplesmente está fora do mercado. Por que isso? Acredito que uma das causas é o racismo estrutural dentro do nosso país, que é escancarado” (Hemerson Maria à Agencia CEUB).
Frequentemente levantamos a pauta do racismo sofrido por nossos atletas na Europa, apontamos o tamanho e quão dolorosa é essa questão em nosso passado, em nossa história, porém, esquecemos de refletir sobre os casos que acontecem aqui, como diria, “em nosso próprio quintal”. Além de apoiar a luta antirracista no exterior precisamos ser antirracistas em nosso cotidiano, em nosso país e cobrar por políticas que prezem pela equidade de oportunidades em todos os âmbitos de nossa sociedade. Precisamos exigir que o futebol além de um espaço de amor, seja também um espaço antirracista tanto dentro das quatro linhas, quanto ao lado, no banco de reservas e comissão técnica. Como começamos? Ainda não sei, mas buscando representatividade, valorização e equidade me parece ser um bom começo.
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