O futebol como um componente da arte, e a arte composta pelo futebol
- Flávia Soares
- 18 de mai. de 2023
- 5 min de leitura
Um fenômeno multicultural descrito além da habilidade e da técnica
Marginalizado e consequentemente desprezado por estudos acadêmicos: durante muito tempo o futebol foi reconhecido como um contribuinte à cultura de massa, um tópico alienador. Seguindo a análise sobre a questão da sociedade de massa realizada por Adorno e Horkheimer (escola de Frankfurt), tal esporte manteve-se ignorado pela ciência política. Já no Brasil, pode-se enxergar a transição deste tema para um objeto de estudo, considerando que o futebol estendia-se do campo e tornava-se um instrumento político e cultural; estudá-lo como um fenômeno multicultural garante a compreensão para a formação de uma identidade para a sociedade brasileira.
Subjetivamente interpretado sob diversas perspectivas estéticas, o futebol desenvolve-se de forma paralela com a arte, ao mesmo tempo em que ambos se cruzam. Seja de maneira direta: através da habilidade de um jogador ao conduzir a bola. Ou indireta: quando as emoções geradas por um jogo podem ser descritas de modo literário. Segundo Gilberto Freyre — um dos mais importantes sociólogos do século XX — o que trouxe a composição do futebol brasileiro seria "a mistura da molecagem baiana e até um pouco de capoeiragem pernambucana ou malandragem carioca" (Freyre, 1964:XIV). Entende-se por vez, que diferente de qualquer outro esporte, o futebol no Brasil compõe-se por danças variadas de surpresas, entre o racional e o irracional, prevalecendo o irracional, que trata-se da imprevisibilidade de um jogo de emoções que somente o futebol brasileiro possui. O campo é o espaço para o drama e o esplêndido.
Marcando presença fora dos estádios, tal modalidade esportiva começa a ocupar espaço no cenário da música popular brasileira, evidenciando um sentimento comum, e principalmente, juntando duas essências da cultura do país em uma só: música e futebol. Com inúmeros artistas retratando o esporte em suas canções, destaca-se o rubro-negro Jorge Ben Jor, que, com composições que abordam sua vivência, homenageia o seu time de coração, e simboliza mimeticamente a arte do futebol — ou como o próprio músico descreve: "guerra maravilhosa de 90 minutos" — em diversas obras.
No ano de 1972, inspirado na genialidade da jogada de Fio Maravilha (ex atacante do Flamengo), Jorge Ben garante mais uma vez sua reputação na história musical. Através da canção que obteve seu título alterado por direitos autorais, Fio Maravilha ou Filho Maravilha marca o nome como um conto futebolístico, folclórico e melodioso. Por meio de uma introdução harmoniosa, o artista narra o gol de marca angelical, e por consequência, descreve a gratidão da grande Magnética — apelido dado pelo músico aos rubro-negros presentes no Maracanã — ao autor do gol de placa.
A obra registrada anos mais tarde no álbum Ben (1979) utiliza primeiramente por meios subjetivos a narrativa da partida, nos versos: "E novamente ele chegou com inspiração / Com muito amor, com emoção / Com explosão e gol", a rima estende-se preparando para envolver o ouvinte ao ponto principal, a jogada: “tabelou, driblou dois zagueiros / deu um toque, driblou o goleiro”, estes versos por sua vez são descritos de maneira técnica, interpretados por uma certa pulsação, relatando a velocidade do lance. Quanto ao mais, a música dá continuidade à narrativa por um meio magistral.
Em seu álbum Solta O Pavão (1975), Jorge Ben "abre-o" com a faixa Zagueiro, uma obra que através da essência do samba e do rock, e o violão sendo utilizado como batida de percussão, há quem acredita que a canção homenageia o "anjo da guarda da defesa": Rondinelli. A música descreveria então, como o camisa 3 rubro-negro agia em campo. Um jogador enérgico, leal e sangue frio. Palavras do próprio músico, nos versos: "Tem que ser sutil e elegante / Ter sangue frio, acreditar em si e ser leal / Zagueiro tem que ser malandro". Fazendo jus ao contexto mágico e medieval de seu álbum, Jorge Ben "profetiza" a importância que o zagueiro passaria a ter na mitologia rubro-negra, aquele cujo a Magnética chamaria de deus da Raça. Três anos após o lançamento da obra, Rondinelli marca um gol aos 42 do segundo tempo, numa final espetacular contra o seu arquirrival, Vasco da Gama. Num Maracanã lotado, inflamado por mais de 120 mil apaixonados torcedores, esse gol — que resultou no título carioca de 78 — deu o pontapé inicial para aquela que até hoje é considerada como a "geração de ouro" do Flamengo — e um dos maiores times de futebol da história — uma equipe fenomenal que nos cinco anos seguintes conquistou todos os títulos possíveis e imagináveis da época. Culminando no maior título de todos os tempos do clube: o Mundial Interclubes (Tóquio, 1981).
Através de uma produção que abrange samba, soul e funk norte-americano, Jorge Ben estimula em seu álbum África Brasil (1976) um ineditismo do mercado da MPB. Nesta obra que resgata cada vez mais valor histórico, o alquimista retrata novas experiências e conhecimentos para quem o aprecia, viajando do continente africano à América do Sul. Em sua primeira faixa, Ponta de Lança Africano (Umbabarauma), Jorge Ben homenageia o futebol mais uma vez, e nesta ocasião numa linha bem ofensiva. Encantado com o homem que atrai gol, que se lança como uma flecha em direção às redes, o músico define o cenário da partida como uma tarde bonita de uma cidade que ficou vazia só para vê-lo jogar. Reforça em seus versos uma gratidão que não vem somente dele, mas da torcida também, uma paixão compartilhada que não pode ser definida somente por quatro linhas, e é desta maneira que estabelece-se a relação entre o futebol e o homem. Considerando o discurso antológico do álbum, o artista inclui o esporte como uma manifestação politica.
Chegando quase ao fim desta viagem alquímica e histórica, Jorge Ben reforça o apelido de Zico como o "Camisa 10 da Gávea", a nona faixa do álbum expressa a segurança que o meia rubro-negro transmitia à Magnética através dos versos "É falta na entrada da área / Adivinha quem vai bater? / É o camisa 10 da Gávea", liderando as estatísticas da artilharia do clube, o Rei marcou — só pelo Flamengo — 509 gols. Indubitavelmente o maior ídolo da história do time, foi crucial nas três vezes que a rede foi estufada em dezembro de 81. Cada toque e cada jogada puderam determinar a Era de Ouro rubro-negra. Descrevendo partidas e lances como ninguém, o artista declara em sua canção as características do atleta "Ele tem uma dinâmica / Física, rica e rítmica / Seus reflexos lúcidos / Lançamentos, dribles desconcertantes / Chutes maliciosos / São como flashes eletrizantes", citando tais atributos de acordo com a identidade do álbum, a letra relativiza-se com elementos presentes no samba e no futebol, como por exemplo, o apito, que determina padrões rítmicos do tal gênero musical, e alerta os jogadores por decisões técnicas.
Em 1981, Jorge Ben lança seu décimo nono álbum: Bem-Vinda Amizade. A nona faixa presente Para Que Digladiar foi ensaiada e apresentada com o Galinha de Quintino — que acompanhou o cantor e sua banda num chorinho — no evento Especial Energia (1982), um programa especial com Jorge Ben. No ensaio, Zico afirma a respeito do cantor ter enviado uma fita de um remix da obra citando "De domingo não passará, não passará", que por sua vez, tinha o objetivo de motivar os jogadores do Flamengo a vencerem o Campeonato Carioca, após perderem duas partidas contra o Vasco, e precisando de um empate. E de domingo não passou mesmo, Flamengo venceu por 2 a 1, garantindo o título carioca, uma semana antes do título mundial.
Seja por meio de figurativizações, ou tematizações, o futebol estabeleceu-se como um fator relevante para a formação de uma identidade nacional, e é comprovado pela relação recíproca entre a arte e o esporte, pois tal relação possibilita enxergar a arte nos movimentos, e assim, concretizar a capacidade abstrata que o futebol possui através da música. A MPB tem por principal objetivo promover a contemporação sociológica, abordando e criando movimentos sociais, e visto isso, não há como desconsiderar tal tema que se fez e faz presente nas vidas de torcedores e artistas.
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