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O berço militar do Campeonato Brasileiro

Ele ocupa a maior parte do calendário nacional do futebol e quase mata todo mundo de saudade quando parte, mesmo que por “apenas” alguns meses. O Campeonato Brasileiro é uma das competições mais queridas pelo fã brasileiro do futebol, gerando, há mais de 50 anos, alegrias, tristezas, disputas, embates, união e discordância. Porém, o que pouco é mencionado quando se fala do surgimento do torneio mais importante do futebol no Brasil é a sua origem. Na data em que se completa 60 anos do golpe de Estado que deu origem ao Regime Militar no Brasil, também é importante lembrar do período em que o futebol, mais do que nunca, também foi política.

A noite do dia 31 de março de 1964 mudaria drasticamente os rumos do país. Grupos do Exército tomaram as ruas da cidade do Rio de Janeiro nas horas seguintes, então capital do Brasil, forçando a fuga do presidente João Goulart em busca de apoio para sua continuidade no poder. O parlamentar não o obteve e foi deposto da presidência no dia 2 de abril, dando abertura para o início do Regime Militar, que se estenderia por mais 21 anos e seria marcado pela dureza e pela supressão dos direitos civis.

Naquele mesmo dia, os acontecimentos já interferiram na dinâmica do futebol na época. O Fluminense, sediado nas Laranjeiras, na cidade do Rio e na mesma área do Palácio das Laranjeiras, que era residência oficial de João Goulart, precisou evacuar os sócios presentes no treino de preparação para uma partida contra o Bangu, que ocorreria no dia seguinte. Além do risco da presença das tropas militares, a realização de manifestações contrárias à ocupação já apresentava perigo naquela região o que obrigou o clube a se movimentar. O treino, comandado pelo técnico paraguaio Fleitas Solich, não parou. Mas a partida, logicamente, não ocorreu.

O jogo era válido pela 16ª edição do Torneio Rio-São Paulo, para o qual estava previsto também um jogo entre Corinthians e São Paulo no mesmo dia, que também foi cancelado. O campeonato contou com a participação de dez clubes do eixo Rio/SP: Flamengo, Fluminense, Vasco, Bangu, Botafogo, Corinthians, São Paulo, Santos, Palmeiras e Portuguesa. Apesar da movimentação política, o Torneio prosseguiu até o final, porém, não houve possibilidade de realizar a segunda partida da final disputada entre Botafogo e Santos, com o título sendo dividido entre os dois alvinegros.

Desde então, o futebol se tornou uma importante ferramenta do governo militar para sua reafirmação na sociedade. Em 1970, dois anos após o lançamento do repressor Ato Institucional 5 (AI-5) e um ano antes da criação do Brasileirão, a Seleção Brasileira se tornou tricampeã na Copa do Mundo do México. A Canarinho, entretanto, tinha influência do regime. O responsável por era um major-brigadeiro, Jerônimo Bastos, e o preparador físico era um capitão, Cláudio Coutinho. O treinamento também tinha ares de militar, e os jogadores eram constantemente vigiados em suas condutas. A conquista do Tri, tão importante para o futebol nacional, foi utilizada para acender o ufanismo e o patriotismo na população da época. Slogans como “Ninguém Segura Esse País” e “Brasil: Ame-o ou Deixe-o” descreviam a situação daquele momento.

Naquele mesmo ano, começou a surgir discussões a cerca da necessidade de se existir um Campeonato Brasileiro de fato. A insatisfação com os moldes de campeonatos anteriores como a Taça Brasil e a Roberto Gomes Pedrosa, junto com a pressão da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) na época foram de grande importância para a decisão. Em 70, o presidente Emílio Garrastazu Médici assinou a criação de um Plano de Integração Nacional, que envolvia em uma de suas diretrizes o futebol, viabilizando o apoio para a criação de um torneio de proporções nacionais.

Surgiu, então, o primeiro Campeonato Brasileiro de Futebol, chamado na época de Campeonato Nacional de Clubes. Na primeira fase, os vinte clubes participantes foram divididos em duas chaves com dez times, jogando uns com os outros, contra os adversários da sua chave e depois contra os da outra. Os seis primeiros de cada chave se classificariam para a fase seguinte, na qual os doze seriam divididos em três grupos com quatro clubes, que jogariam em dois turnos. Os primeiros colocados de cada um se classificariam para a fase final, na qual seria disputado um triangular. Participaram do torneio o América do Rio de Janeiro, América Mineiro, Atlético Mineiro, Bahia, Botafogo, Ceará, Corinthians, Coritiba, Cruzeiro, Flamengo, Fluminense, Grêmio, Internacional, Palmeiras, Portuguesa, Santa Cruz, Santos, São Paulo, Sport e Vasco. São Paulo, Botafogo e Atlético Mineiro chegaram à final, mas o título ficou com o clube mineiro.

Entretanto, o objetivo de integração nacional parece não ter sido plenamente alcançado na época. Clubes que ficaram de fora do Campeonato, principalmente os de Goiás, expressaram indignação pelo favoritismo concedido aos clubes que formaram o primeiro Campeonato Brasileiro e decidiram pela criação do Torneio de Integração Nacional, que contou com a participação de 16 clubes de diferentes estados – mas com maioria goiana: Anápolis, de Goiás, Atlético Goianiense, Botafogo-PB, Campinas, de Goiás, Campo Grande, do Rio, Desportiva Ferroviária, do Espirito Santo, Fast Clube, do Amazonas, Fluminense de Feira, da Bahia, Fortaleza, Goiás, Goiânia, Moto Club, do Maranhão, Náutico, Ponte Preta, União Bandeirante do Paraná e Vila Nova, de Goiás.

O torneio só durou uma temporada, tendo o Atlético Goianiense como campeão, e influenciou uma maior abrangência no Campeonato Brasileiro. Em 72, o Brasileirão acrescentou seis times do Alagoas, Amazonas, Pará, Rio Grande do Norte e do Sergipe, número que só foi crescendo nos anos seguintes, até chegar à impressionante marca de 94 participantes, em 1979. Clubes pequenos foram incluídos no torneio para estimular a ideia de inclusão que tentava ser vendida pelo Regime naquele período, o que é visto na expressão “Onde a Arena vai mal, mais um time no nacional”. A Aliança Renovadora Nacional (Arena) era o partido do Regime Militar. Também foi nesse período, marcado por construções faraônicas motivadas por um suposto milagre econômico gerado pelo regime – como a Usina de Itaipu e a Ponte Rio-Niterói –, no qual muitos estádios foram construídos. 52 caldeirões foram levantados ou reformados nessa época, 32 só na década de 70.

Nos anos 80, porém, momento em que o Regime Militar começou a ruir, o cenário no futebol também mudou. Devido à crise financeira que começou a surgir oriunda das movimentações dos governos dos militares, os campeonatos tiveram que ser enxugados, incluindo o Brasileirão, que reduziu sobretudo a quantidade de clubes participantes. A década de 1980 também foi marcada pelo levante de movimentos que lutavam pela democracia, e no futebol, não foi diferente; foi quando surgiu, por exemplo, a Democracia Corinthiana, movimento que não só favoreceu o desempenho do clube paulista dentro de campo como foi um participante ativo das manifestações em prol da liberdade.

O Regime Militar terminou em 1985 com a eleição de Tancredo Neves, ano em que o Coritiba se tornou campeão do Brasileirão. Poucos anos mais tarde o torneio voltaria a enfrentar turbulências, como em 1987 com a criação da Copa União e a disputa entre Flamengo e Sport pelo título de campeão nacional daquele ano, mas a situação do maior campeonato do país logo se normalizaria e se consolidaria, tornando-se o que é nos dias de hoje. A influência do controle dos governos nas confederações no período do Regime mantém os seus resquícios em muitos aspectos, principalmente no comando de algumas federações nos dias de hoje e da própria CBF, mas felizmente, o que antes era uma ferramenta de afirmação de um governo repressor se transformou, positivamente, em parte da identidade do futebol nacional nos dias de hoje.


foto destaque: arquivo O Globo

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