As chamas do Ninho do Urubu ainda queimam
- Carla Dayube Pires
- 23 de out.
- 3 min de leitura
Na madrugada de 8 de fevereiro de 2019, o Brasil acordou em luto. No alojamento da base do Flamengo, conhecido como Ninho do Urubu, um incêndio destruiu não apenas um conjunto de contêineres, mas dez histórias em construção. Eram meninos entre 14 e 16 anos, meninos que sonhavam vestir a camisa do time profissional, que acreditavam ter encontrado no futebol o caminho para mudar a própria vida e a da família.
Mas o que chamavam de “alojamento” era, na verdade, um improviso: um conjunto de contêineres metálicos adaptados como dormitórios, sem o devido alvará, sem condições adequadas de segurança. O fogo começou durante a madrugada, e em poucos minutos o sonho virou tragédia.
Seis anos depois, em outubro de 2025, a Justiça absolveu sete dos acusados por incêndio culposo e lesão grave. Nenhum responsável foi condenado. Nenhum culpado foi oficialmente reconhecido. E mais uma vez, o país assistiu a uma ferida se abrir, não apenas nas famílias das vítimas, mas em todos que acreditam que a vida deve valer mais do que a estrutura de um clube.
A dor que não prescreve
O incêndio do Ninho do Urubu não foi um acidente imprevisível. Foi o resultado de uma cadeia de negligências: instalações inadequadas, ausência de fiscalização, despreparo e omissão. Mesmo assim, o veredito da Justiça parece repetir o que tantas vezes já ouvimos neste país, quando o poder fala mais alto, a culpa se apaga.
As famílias, que há anos lutam por justiça, receberam a decisão como uma nova sentença de dor. Para elas, os filhos morreram duas vezes: uma no fogo, outra na indiferença. O que temos aqui é um retrato doloroso de como se constrói uma narrativa de impunidade quando se está lidando com o essencial: vidas jovens, vulneráveis, em formação.
O berço vazio
O futebol brasileiro sempre se orgulhou de ser o berço de talentos, o caminho de ascensão social, o sonho possível. Mas, naquele 8 de fevereiro, o futebol falhou com os seus. Falhou ao permitir que meninos dormissem em estruturas precárias. Falhou ao transformar vidas em estatísticas. Falhou ao não aprender com o erro e ao aceitar o silêncio como resposta.
Para nós, mulheres que amamos e respiramos futebol, essa tragédia tem um peso simbólico. Porque o esporte que defendemos não é apenas paixão, é também responsabilidade. Amar o futebol é exigir que ele seja um espaço de dignidade, e não de exploração.
Que não se apague a chama da memória
O caso do Ninho do Urubu precisa continuar sendo lembrado, não como um episódio isolado, mas como um símbolo de tudo o que precisa mudar no esporte brasileiro: fiscalização real, respeito às categorias de base, responsabilidade institucional e empatia pelas famílias que perderam seus filhos.
Enquanto os tribunais absolvem, a sociedade precisa cobrar. Porque a impunidade não devolve vidas, mas perpetua o risco. E cada vez que a Justiça se cala diante de uma tragédia como essa, ela ensina o país a se acostumar com o inaceitável.
Que o nome de cada um daqueles meninos seja lembrado não pela forma como morreram, mas pelo que sonharam ser. E que o futebol, esse mesmo futebol que arranca lágrimas e sorrisos, finalmente aprenda que nenhum título vale mais do que uma vida.
*Em memória e respeito a
Athila Souza Paixão, 14 anos — Lagarto, Sergipe
Arthur Vinícius de Barros Silva Freitas, 15 anos — Volta Redonda, Rio de Janeiro
Bernardo Pisetta, 14 anos — Indaial, Santa Catarina
Christian Esmério, 15 anos — Madureira, Rio de Janeiro
Gedson Santos, 14 anos — Itararé, São Paulo
Jorge Eduardo Santos, 15 anos — Além Paraíba, Minas Gerais
Pablo Henrique da Silva, 14 anos — Oliveira, Minas Gerais
Rykelmo de Souza Viana, 17 anos — Limeira, São Paulo
Samuel Thomas Rosa, 15 anos — São João de Meriti, Rio de Janeiro
Vitor Isaías, 15 anos — Florianópolis, Santa Catarina
Que o brilho desses meninos siga iluminando o campo onde a justiça ainda precisa entrar em jogo.





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